Evolução da desinfeção e esterilização: será este o momento certo para reavaliar os padrões utilizados para medir o processamento de dispositivos médicos?

Passaram quase 65 anos desde que o Dr. Earle Spaulding formulou um sistema baseado no risco – a Classificação de Spaulding – para determinar o grau mínimo de processamento seguro necessário antes de um dispositivo médico/cirúrgico poder ser (re)utilizado de acordo com a sua utilização prevista [1]. Com muitas opções de processamento e nem todos os dispositivos médicos tendo o mesmo grau de risco envolvido na sua utilização [2], é uma ajuda valiosa para os profissionais que têm de garantir que os dispositivos médicos têm um nível de higiene adequado à sua aplicação relevante para garantir a segurança dos pacientes [1].

A Classificação de Spaulding tem sido amplamente adotada por profissionais de controlo de infeções, bem como na formulação de diversos regulamentos globais e normas clínicas [1][3][4]. Embora o seu conceito permaneça válido, falhas inesperadas no processamento sugerem a necessidade de reconsideração e potencial otimização [1]. Além disso, como a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA já observou em 2015, a Classificação de Spaulding não consegue abordar todas as utilizações de dispositivos clínicos e todas as necessidades de processamento [3].

Enquadramento

O Dr. Earle Spaulding, professor e presidente do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Temple University School of Medicine and Hospital [5], propôs "uma estratégia para a esterilização ou desinfeção de objetos e superfícies inanimados com base no grau de risco envolvido na sua utilização" [6]. O seu sistema de três níveis dividiu os dispositivos de cuidados a pacientes em três categorias: não críticos, semicríticos e críticos (Tabela A) e identificou os níveis correspondentes de atividade microbicida: esterilização, desinfeção de nível elevado, desinfeção de nível intermédio e desinfeção de nível reduzido para estratégias dentro das três categorias. A classificação conduz a decisões sobre o nível de desinfeção ou esterilização necessário para os dispositivos médicos/cirúrgicos (consulte a Tabela B).

Tabela A: Classificação de Spaulding

Material crítico

Material semicrítico

Material não crítico

Categoria

Os materiais críticos são dispositivos introduzidos diretamente na corrente sanguínea ou que entrariam em contacto com um tecido ou espaço corporal normalmente estéril durante a utilização [3].

Os materiais semicríticos entram em contacto com as membranas mucosas intactas ou com a pele não intacta. Habitualmente, não penetram nos tecidos nem entram em zonas normalmente estéreis do corpo [3].

Os materiais não críticos são instrumentos e outros dispositivos cujas superfícies apenas contactam com a pele intacta e não a penetram [3].

Exemplos

Instrumentos cirúrgicos

Endoscópios utilizados em cavidades corporais estéreis, tais como laparoscópios, artroscópios, endoscópios intravasculares

Acessórios terapêuticos para endoscópios [3]

Duodenoscópios

Tubos endotraqueais

Broncoscópios

Lâminas de laringoscópio e outro equipamento respiratório [3]

Punhos de tensão arterial

Estetoscópios

Polos cutâneos [3]

Processo necessário

Esterilização

Desinfeção

Desinfeção

Tabela B: Esterilização vs. desinfeção

Esterilização

Desinfeção

Artigos críticos (irão entrar nos tecidos ou no sistema vascular ou o sangue irá fluir através deles) [7]

Nível elevado (artigos semicríticos; [exceto dentários] irão entrar em contacto com membranas mucosas ou pele não intacta) [7]

Nível intermédio (alguns artigos semicríticos e artigos não críticos) [7]

Nível reduzido (artigos não críticos; irão entrar em contacto com pele intacta) [7]

Uma evolução

Desde que a Classificação de Spaulding foi publicada, a complexidade das intervenções médicas e o grau de tratamento terapêutico não invasivo ou minimamente invasivo evoluíram significativamente.

Tratamentos, como a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), foram introduzidos na década de 1970, utilizando endoscópios e fluoroscopia para obter imagens que auxiliam o diagnóstico e o tratamento de pacientes. Na década de 2000, seguiu-se a pneumologia de intervenção, utilizando a tecnologia de ultrassons endobrônquica com sonda convexa e a cirurgia minimamente invasiva, como a laparoscopia. No entanto, este rápido progresso trouxe consigo o potencial para infeções, uma vez que os procedimentos médicos eram cada vez mais complexos [10].

Outros fatores contribuíram para a utilização de instrumentos médicos mais avançados com uma mecânica altamente sofisticada e lumina de difícil acesso, bem como a utilização de misturas de materiais não inoxidáveis. Estes dispositivos podem colocar desafios significativos ao processamento e requerem uma proficiência substancial e um profundo conhecimento técnico. Estes últimos são essenciais para um processamento bem-sucedido e devem ser comunicados pelo fabricante aos utilizadores no momento da compra, e periodicamente atualizados, quando adequado. Além disso, surgiram nas últimas décadas tecnologias e princípios de processamento, por exemplo, o peróxido de hidrogénio vaporizado como alternativa à esterilização a vapor clássica (também conhecida como autoclavagem) e a utilização de ácido peracético como esterilizante [11].

Nos últimos 65 anos, registaram-se progressos significativos na conceção de dispositivos médicos, nas tecnologias de processamento e na complexidade das intervenções médicas. Além disso, o aparecimento de micro-organismos multirresistentes e de novos conhecimentos sobre microbiomas naturais em diferentes cavidades corporais representam desafios adicionais para a área da prevenção e controlo de infeções. Por conseguinte, pode ser aconselhável avaliar criticamente se uma atualização da Classificação de Spaulding poderia fornecer orientações adicionais aos profissionais e aumentar a segurança dos pacientes. Uma iniciativa conjunta e colaborativa de fabricantes de dispositivos médicos/cirúrgicos e de tecnologias de processamento, médicos, especialistas em processamento de dispositivos médicos, bem como entidades reguladoras, poderia idealizar a necessária renovação, não necessariamente uma revolução, da Classificação de Spaulding – o conceito básico de processamento de dispositivos médicos baseado no grau de risco associado a um procedimento médico atual.

Fontes e leituras adicionais

  1. G McDonnell, P Burke. Disinfection is it time to reconsider Spaulding. Journal of Hospital Infection 78 (2011). doi:10.1016/j.jhin.2011.05.002. Consultado abril 2022.

  2. FDA. https://www.fda.gov/medical-devices/reprocessing-reusable-medical-devices/how-are-reusable-medical-devices-reprocessed. Consultado abril 2022.

  3. FDA. https://www.fda.gov/media/80265/download. Consultado abril 2022.

  4. ISO. https://www.iso.org/news/ref2570.html. Consultado abril 2022.

  5. Earle H. Spaulding, Principles and Application of Chemical Disinfection, AORN Journal, Volume 1, Issue 3, 1963, 36-46,ISSN 0001-2092. https://doi.org/10.1016/S0001-2092(08)70737-3. Consultado abril 2022.

  6. CDC. https://www.cdc.gov/oralhealth/infectioncontrol/glossary.htm. Consultado abril 2022.

  7. CDC. https://www.cdc.gov/infectioncontrol/guidelines/disinfection/tables/table1.html. Consultado abril 2022.

  8. Mainul Haque, et al. Infect Drug Resist. 2018; 11: 2321–2333. Published online 2018 Nov 15. https://doi.org/10.2147/IDR.S177247. Consultado abril 2022.

  9. Guest JF, Keating T, Gould D, et al Modelling the annual NHS costs and outcomes attributable to healthcare-associated infections in England. BMJ Open 2020;10:e033367. doi:  https://bmjopen.bmj.com/content/10/1/e033367. Consultado abril 2022.

  10. CDC. https://www.cdc.gov/hai/data/portal/covid-impact-hai.html. Consultado abril 2022.

  11. CDC, https://www.cdc.gov/infectioncontrol/guidelines/disinfection/sterilization/peracetic-acid.html.Consultado abril 2022.